Artigo
Distantes do senso comum
Quanto maior a desarmonia social, mais longe a ideia de encontrarmos o senso comum, esse ponto na régua dos hábitos e costumes vivenciados pela sociedade. Pois bem, estamos atravessando um ciclo de intensa dissonância cognitiva, caracterizada por dúvidas, incertezas, polêmicas, que se formam no espírito de um tempo carregado de desolação. Querelas de toda a natureza se espraiam no espaço nacional, a mostrar as diferenças entre alas e grupos. Em tempos idos, dois temas embutiam conflitos de posições: futebol e religião. Hoje, o campo se alarga com a inserção da política, dos governos e suas gestões e, sem dúvida, da crise sanitária deflagrada pela covid-19 e suas variantes.
Qual o fato gerador dessa paisagem tão conflituosa? Não há um aspecto que possa ser identificado como eixo-mor, a não ser que possamos agrupar os principais fatores em torno do que podemos carimbar como Produto Nacional Bruto da Felicidade (PNBF). Que junta, por exemplo, dinheiro no bolso, barriga satisfeita, exemplares transportes coletivos, alimento barato, casa habitável, água encanada, esgoto, equipados e eficientes hospitais e maternidades, vacinas rápidas e para todos, enfim, um clima de satisfação coletiva. Esses aspectos nas margens positiva e negativa apontam para o que vem a ser bom senso.
Ademais, conforme narra Guy Debord, em seu livro A Sociedade do Espetáculo, toda a vida “nas sociedades nas quais reinam as modernas condições de produção se apresenta como uma imensa acumulação de espetáculos”. Nessa mesma linha, pontua Roger-Gérard Schwartzenberg, quando descreve em O Estado-Espetáculo, os protagonistas do palco da política imitando os atores. No mundo atual, o que mais importa aos representantes é aparecer, ganhar visibilidade, dourar a imagem, fazendo com que a cópia seja mais importante que o original, a representação tendo mais destaque que a realidade. “A ilusão é sagrada e a verdade é profana”, arremata Debord.
Tempos de conflito e de ódio destilado nas usinas humanas, que se formam em torno de uns e outros perfis da política utilitarista, aquela que se banha nas águas franciscanas do “é dando que se recebe”. O descrédito campeia de todos os lados. A desconfiança grassa, para lembrar o timoneiro Simon Bolívar que, há mais de dois séculos, fazia ecoar seu lamento: “Não há boa-fé na América, nem entre os homens, nem entre as nações. Os tratados são papéis, as Constituições não passam de livros, as eleições são batalhas, a liberdade é anarquia, e a vida um tormento”. Emboscadas e traições na política nunca pontuaram de modo tão avassalador. A banalização das coisas impregna o cotidiano. A morte? Coisa banal. Mais de mil pessoas morrem por dia no Brasil. O índice já não mais comove.
Pior é sentir que a resignação banha as vontades. “Ah, não há jeito de melhorar, devemos nos acostumar com isso; ah, não tem outro, não; ele vai ser reeleito facilmente; essas oposições partidárias são fracas e não resistem a um rolo compressor”. A linguagem social ruma em direção às encruzilhadas do conformismo, do catastrofismo, da leniência. “Se os maiorais roubam, por que não posso roubar só um pouquinho”? Forma-se uma densa camada de desonestidade, que tem como lume o exemplo que vem de cima, o modus operandi dos maiorais, o novo triângulo que se desenvolve no seio das democracias, juntando políticos, máquinas burocráticas e círculos de negócios. Essa tendência reforça o que alguns autores chamam de “tecnodemocracia”.
E onde estão os remédios ou, melhor, as vacinas éticas e morais de que nos fala o padre João Medeiros Filho, em celebrado artigo recente no jornal Tribuna do Norte (RN), “Uma Vacina em Prol da Ética e da Moralidade”? “Além das vacinas contra a epidemia que grassa pelo Brasil, necessita-se também imunizá-lo contra o ódio, radicalismo, egoísmo, interesses escusos, desrespeito, injustiças e mentira. É incontestável que a fragilidade da saúde pública é um problema crônico, que se arrasta há décadas. Não faltam alertas e denúncias de profissionais e líderes. Não se improvisam soluções duradouras, nem existem respostas automáticas e mágicas. Urge uma dose maior de solidariedade e otimismo. É necessário crescer no altruísmo, inoculando na sociedade mais respeito, diálogo e amor”.
Eis aí uma tarefa para gerações. Altruísmo, civismo, progresso espiritual, elevação moral de um povo são metas que integram o mais alto grau civilizatório. Mas não alcançaremos esse ideal sem a base do edifício da cidadania: Educação. Sem essa semente, a floresta humana não dará bons frutos.
Quanto maior a desarmonia social, mais longe a ideia de encontrarmos o senso comum, esse ponto na régua dos hábitos e costumes vivenciados pela sociedade. Pois bem, estamos atravessando um ciclo de intensa dissonância cognitiva, caracterizada por dúvidas, incertezas, polêmicas, que se formam no espírito de um tempo carregado de desolação. Querelas de toda a natureza se espraiam no espaço nacional, a mostrar as diferenças entre alas e grupos. Em tempos idos, dois temas embutiam conflitos de posições: futebol e religião. Hoje, o campo se alarga com a inserção da política, dos governos e suas gestões e, sem dúvida, da crise sanitária deflagrada pela covid-19 e suas variantes.
Qual o fato gerador dessa paisagem tão conflituosa? Não há um aspecto que possa ser identificado como eixo-mor, a não ser que possamos agrupar os principais fatores em torno do que podemos carimbar como Produto Nacional Bruto da Felicidade (PNBF). Que junta, por exemplo, dinheiro no bolso, barriga satisfeita, exemplares transportes coletivos, alimento barato, casa habitável, água encanada, esgoto, equipados e eficientes hospitais e maternidades, vacinas rápidas e para todos, enfim, um clima de satisfação coletiva. Esses aspectos nas margens positiva e negativa apontam para o que vem a ser bom senso.
Ademais, conforme narra Guy Debord, em seu livro A Sociedade do Espetáculo, toda a vida “nas sociedades nas quais reinam as modernas condições de produção se apresenta como uma imensa acumulação de espetáculos”. Nessa mesma linha, pontua Roger-Gérard Schwartzenberg, quando descreve em O Estado-Espetáculo, os protagonistas do palco da política imitando os atores. No mundo atual, o que mais importa aos representantes é aparecer, ganhar visibilidade, dourar a imagem, fazendo com que a cópia seja mais importante que o original, a representação tendo mais destaque que a realidade. “A ilusão é sagrada e a verdade é profana”, arremata Debord.
Tempos de conflito e de ódio destilado nas usinas humanas, que se formam em torno de uns e outros perfis da política utilitarista, aquela que se banha nas águas franciscanas do “é dando que se recebe”. O descrédito campeia de todos os lados. A desconfiança grassa, para lembrar o timoneiro Simon Bolívar que, há mais de dois séculos, fazia ecoar seu lamento: “Não há boa-fé na América, nem entre os homens, nem entre as nações. Os tratados são papéis, as Constituições não passam de livros, as eleições são batalhas, a liberdade é anarquia, e a vida um tormento”. Emboscadas e traições na política nunca pontuaram de modo tão avassalador. A banalização das coisas impregna o cotidiano. A morte? Coisa banal. Mais de mil pessoas morrem por dia no Brasil. O índice já não mais comove.
Pior é sentir que a resignação banha as vontades. “Ah, não há jeito de melhorar, devemos nos acostumar com isso; ah, não tem outro, não; ele vai ser reeleito facilmente; essas oposições partidárias são fracas e não resistem a um rolo compressor”. A linguagem social ruma em direção às encruzilhadas do conformismo, do catastrofismo, da leniência. “Se os maiorais roubam, por que não posso roubar só um pouquinho”? Forma-se uma densa camada de desonestidade, que tem como lume o exemplo que vem de cima, o modus operandi dos maiorais, o novo triângulo que se desenvolve no seio das democracias, juntando políticos, máquinas burocráticas e círculos de negócios. Essa tendência reforça o que alguns autores chamam de “tecnodemocracia”.
E onde estão os remédios ou, melhor, as vacinas éticas e morais de que nos fala o padre João Medeiros Filho, em celebrado artigo recente no jornal Tribuna do Norte (RN), “Uma Vacina em Prol da Ética e da Moralidade”? “Além das vacinas contra a epidemia que grassa pelo Brasil, necessita-se também imunizá-lo contra o ódio, radicalismo, egoísmo, interesses escusos, desrespeito, injustiças e mentira. É incontestável que a fragilidade da saúde pública é um problema crônico, que se arrasta há décadas. Não faltam alertas e denúncias de profissionais e líderes. Não se improvisam soluções duradouras, nem existem respostas automáticas e mágicas. Urge uma dose maior de solidariedade e otimismo. É necessário crescer no altruísmo, inoculando na sociedade mais respeito, diálogo e amor”.
Eis aí uma tarefa para gerações. Altruísmo, civismo, progresso espiritual, elevação moral de um povo são metas que integram o mais alto grau civilizatório. Mas não alcançaremos esse ideal sem a base do edifício da cidadania: Educação. Sem essa semente, a floresta humana não dará bons frutos.
Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP, consultor político e de comunicação
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ARTIGO
PEC 6X1: oportunidade para o debate franco acerca da legislação trabalhista
A baixa produtividade nacional está também associada a uma qualidade educacional deficiente, fator que dificulta a implementação de uma jornada reduzida sem impacto negativo na produção. O recente relatório da McKinsey sobre o futuro do trabalho destaca que, para competir em um mercado global, é necessário cultivar habilidades de criatividade, autoaprendizado e flexibilidade. O Brasil, com uma educação pública ainda deficiente, precisaria investir significativamente nesses aspectos para que seus trabalhadores pudessem se beneficiar plenamente de uma jornada reduzida e competir em uma economia mundial em transformação.
A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 6X1, de autoria da deputada federal Erika Hilton (PSOL-SP), tem como objetivo a redução da jornada de trabalho de 44 para 36 horas semanais, mantendo os salários e reorganizando a carga semanal em até quatro dias. Essa proposta vem ao encontro de tendências globais, onde o debate sobre a jornada de trabalho e sua adaptação aos novos tempos — especialmente com o avanço da tecnologia e da inteligência artificial — tem ganhado força.
A PEC 6×1, inspirada pelo Movimento Vida Além do Trabalho (VAT), idealizado pelo vereador Rick Azevedo (PSOL-RJ), pode ser vista como um ponto de partida para uma análise mais profunda sobre o sistema trabalhista brasileiro e suas limitações, tanto para trabalhadores quanto para empregadores.
A questão da jornada de trabalho reduzida é sustentada por um contexto de aumento da produtividade, impulsionado pelas inovações tecnológicas. Essas inovações permitiram que, em alguns setores, menos horas de trabalho resultassem em níveis de produção iguais ou superiores aos modelos tradicionais. No entanto, a discussão sobre a redução da jornada de trabalho não se limita aos ganhos de produtividade. Ela também envolve uma série de outros fatores, como qualidade de vida, saúde mental, e até mesmo a busca por um equilíbrio entre vida pessoal e profissional.
Em termos práticos, a PEC 6X1 procura responder à demanda por uma jornada de trabalho que promova o bem-estar dos trabalhadores sem sacrificar o desempenho econômico. Entretanto, há obstáculos no que diz respeito à aplicabilidade da medida no contexto brasileiro. O arcabouço jurídico trabalhista do país, com regulamentações amplas, visa proteger o trabalhador, mas frequentemente é apontado como um fator que engessa a iniciativa privada e dificulta a criação de empregos.
A complexidade e os custos associados ao cumprimento das leis trabalhistas brasileiras muitas vezes desestimulam empresários, especialmente os pequenos e médios, de contratar formalmente. O excesso regulatório pode ser, em parte, responsável pela baixa produtividade e pela informalidade ainda presente no mercado de trabalho brasileiro.
Além disso, o Brasil já enfrenta desafios específicos em relação ao mercado de trabalho, como a escassez de mão de obra em algumas regiões e o aumento da informalidade. Há também uma pressão social crescente para ajustar programas de assistência, como o Bolsa Família, para que realmente sirvam como apoio temporário, incentivando a entrada no mercado de trabalho. Isso alinha-se à célebre frase do ex-presidente americano Ronald Reagan, para quem “o melhor programa social é o emprego”. Nesse sentido, um mercado de trabalho desburocratizado e uma política de assistência social orientada para a autonomia individual poderiam ser fundamentais para garantir uma economia mais forte e inclusiva.
A baixa produtividade nacional está também associada a uma qualidade educacional deficiente, fator que dificulta a implementação de uma jornada reduzida sem impacto negativo na produção. O recente relatório da McKinsey sobre o futuro do trabalho destaca que, para competir em um mercado global, é necessário cultivar habilidades de criatividade, autoaprendizado e flexibilidade. O Brasil, com uma educação pública ainda deficiente, precisaria investir significativamente nesses aspectos para que seus trabalhadores pudessem se beneficiar plenamente de uma jornada reduzida e competir em uma economia mundial em transformação.
A PEC 6X1, assim, abre uma oportunidade rara para rever os princípios que sustentam o sistema trabalhista brasileiro e questionar se esse modelo atende às necessidades contemporâneas de um mundo em rápida mudança. Trata-se de uma chance para empreender uma reforma que, ao mesmo tempo que preserva a dignidade dos trabalhadores, valorize a iniciativa privada e encoraje a criação de empregos de qualidade. Como se diz, “quando o cavalo selado passa, é hora de pular e aproveitar a chance”.
André Naves é Defensor Público Federal formado em Direito pela USP; especialista em Direitos Humanos e Inclusão Social; mestre em Economia Política pela PUC/SP; cientista político pela Hillsdale College; doutor em Economia pela Princeton University; escritor e professor (Instagram: @andrenaves.def).
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